quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

FÁBIO HASSEN ISMAEL*



O DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL À MORADIA E A EXCLUSÃO DO IDOSO COM IDADE SUPERIOR A 64 ANOS DO PROGRAMA DE ARRENDAMENTO RESIDENCIAL


*Juiz Federal Substituto da 1ª Vara Federal Tributária de Porto Alegre


INTRODUÇÃO

A disposição do Legislador Constituinte em privilegiar direitos sociais, enunciando-os na Constituição, sempre trouxe acirrado debate na doutrina Pátria, gerando controvérsias e teses quanto à eficácia desses direitos, tal como o da pouca eficácia das denominadas normas programáticas e de suas nefandas conseqüências quanto ao direito a prestações e da omissão por parte do Estado. Em contrapartida, veio à luz o entendimento de que esses direitos geram o dever do Estado em implementá-los, o que pontualmente vem sendo aceito na seara judicial.


Na realidade, ainda que sejam verificados muitos aspectos que merecem melhor tratamento pelo Estado, percebe-se a implementação e concretização gradual desses direitos, sobretudo pelo Legislador, centrando-se muitas controvérsias nas restrições e limitações dependentes de regulamentação administrativa.

A questão, tormentosa para os agentes públicos – nem sempre com os olhos voltados para a melhor interpretação da Constituição -, é até que ponto, na sua tarefa de regular e implementar o direito social, podem ou devem agir.

Nesta seara é que se desenvolve o tema deste trabalho, que diz respeito ao Programa de Arrendamento Residencial (PAR), inicialmente implantado pela Medida Provisória 1.823/99 (posteriormente convertida na Lei 10.188/2001), programa que veio sustentado por uma lei extremamente genérica, restando ao Poder Executivo (Administração) o estabelecimento de seu alcance, beneficiários, padrão construtivo, condições e requisitos, inclusive tratando do espinhoso tema das regras de seleção e de exclusão de pretendentes e do atendimento às prioridades estabelecidas por outras normas (por exemplo, o atendimento ao idoso).

Tal regramento, evidentemente, além de lidar com o antagonismo entre a grande deficiência habitacional e as limitações orçamentárias, também deve restringir o menos possível o acesso ao Programa (moradia), açambarcando respeito aos princípios e regras constitucionais.

O tema ganha relevo porquanto envolve o alcance do direito fundamental social à moradia e os deveres e limites que a Administração Pública deve observar em sua implementação, redundando na análise de um caso envolvendo o Programa de Arrendamento Residencial que bateu às portas do Judiciário: a exclusão do idoso maior de 64 anos de idade.

O assunto será abordado iniciando com alguns apontamentos sobre o direito fundamental social à moradia, da atuação do Administrador em sua regulamentação, e finalizando com a análise do ato de exclusão do idoso maior de 64 anos de idade do Programa de Arrendamento Residencial.


2 A Moradia como Direito Fundamental e Sua Eficácia

A Constituição Federal de 1988 não previu, em sua redação original, o direito à habitação, tal como colocado pela Emenda Constitucional nº 26, de 14 de fevereiro de 2000.

Esta situação, no entanto, não chegou a ser um óbice para o reconhecimento de que o direito à moradia (ou habitação) estava imbricado com os demais princípios, objetivos, direitos e garantias fundamentais expressos na Constituição, tais como os da erradicação da pobreza, da dignidade da pessoa humana, da redução das desigualdades sociais e regionais, bem como de dispositivos específicos inseridos ao longo da Carta Constitucional[1]. Foram editadas Leis protegendo a moradia como núcleo familiar (Lei 8.009/90), e a Jurisprudência sempre teve o cuidado de preservar ao máximo a moradia das execuções de dívidas e de outras obrigações.

Explicitado que a moradia passava a ser um direito social, evidentemente houve um incremento em sua importância – e eficácia -, inclusive se lhe atribuindo o status de direito fundamental.

Imperioso, neste ponto, referendar o entendimento pelo qual a norma disposta no parágrafo 1º do artigo 5º da Constituição Federal, segundo a qual “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”, abrange não somente os direitos arrolados nos incisos do artigo 5º, mas também os demais direitos fundamentais arrolados em outros artigos da Carta Constitucional[2].

Com efeito, a posição adotada configura-se como a mais adequada, porquanto as razões para a exegese restritiva não se sustentam; a interpretação de que somente os direitos arrolados no artigo 5º - localização topográfica – seriam alcançados pela norma foge da interpretação teleológica e sistemática exigida pela boa hermenêutica, posto que deve ser conjugada: (a) com a própria redação do dispositivo, que referiu acerca das “normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais”, e não apenas as que constavam no artigo respectivo e; (b) com o parágrafo segundo do mesmo artigo 5º, que deixa em aberto a inclusão de mais direitos e garantias fundamentais.

É dizer, a explícita constitucionalização do direito à moradia acarretou aumento de sua força, de sua efetividade, impondo-se à Administração Pública não só o dever de agir para que esse direito tenha seu pleno exercício, como também de implementar de forma concreta ações tendentes a realizá-lo, para que ele seja fato, que mude a realidade. De acordo com nossa Suprema Corte[3]:

“a interpretação da norma programática não pode transformá-la em promessa constitucional inconseqüente [...] sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado”.

E, em recente julgamento pelo Pleno do mesmo Tribunal, foi salientado o status do direito à moradia, havendo, se não na totalidade, na maioria dos votos, admissão de que se trata de direito fundamental[4], aspecto que já vinha sendo alardeado por parte da doutrina nacional. Por conseguinte, deve-se extrair a máxima força normativa deste direito, servindo não apenas de balizamento, mas de mandamento para a atuação do legislador e do administrador, seja como direito de defesa, seja como direito a prestações.

De qualquer modo, o direito à moradia sempre esteve vinculado diretamente com o princípio da dignidade da pessoa humana, com o direito à vida, entre outros, pelo que se reconhece o seu status de direito fundamental[5], com todas as conseqüências a ele inerentes, envolvendo direito de defesa e direito a prestações.

Deveras, de acordo com a doutrina de Alexy, os direitos fundamentais podem ser distinguidos, segundo a função exercida, em dois grandes grupos: direitos fundamentais como direitos de defesa e os direitos fundamentais como direitos a prestações.

Cuidando do primeiro aspecto – direito de defesa -, é forçoso transcrever a concepção do constitucionalista lusitano J.J. Canotilho, pela qual:

Os direitos fundamentais cumprem a função de direitos de defesa dos cidadãos sob uma dupla perspectiva: (1) constituem, num plano jurídico-objetivo, normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na esfera jurídica individual; (2) implicam, num plano jurídico-subjetivo, o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos. (liberdade negativa)”

No que concerne ao direito a prestações, sem desprezar outros conceitos, entende-se como a tarefa que o Estado tem de alocar os meios materiais e de implementar condições para o efetivo exercício das liberdades fundamentais, pois “os direitos fundamentais a prestações objetivam, em última análise, a garantia não apenas da liberdade-autonomia (liberdade perante o Estado), mas também da liberdade por intermédio do Estado, partindo da premissa de que o indivíduo, no que concerne à conquista e manutenção de sua liberdade, depende em muito de uma postura ativa dos poderes públicos[6]”.

Percebe-se, nesse passo, que os direitos a prestações ensejam muito mais que a abstenção do Estado, ensejam uma postura ativa, gerando obrigação de entregar ao seu povo prestações de natureza jurídica e material. E o direito à moradia, pela sua própria temática, envolve, além de direito de defesa, direito a prestações, fomentando a distribuição de bens e serviços aos indivíduos que não tem acesso à moradia digna, ao essencial, que é ter um lugar para dar acolhimento para si e para sua família.

2.1 Limites à Atuação do Administrador

Muito já se falou, na doutrina brasileira, acerca dos limites da Administração Pública, em especial do seu Poder Regulamentar. Falou-se, inicialmente, na adstrição completa do Administrador à Lei – e da adstrição cega, tolhendo-se a integração e a ação mediante análise do caso concreto -, evoluindo-se para o entendimento de que os seus atos devem ser conformados às regras e princípios constitucionais, princípios fundantes do sistema, inclusive, se for o caso, arredando-se a letra fria da Lei.

Juarez Freitas[7] bem delimita a questão, referindo que “a reserva legal não pode ser a negação da fundamentalidade dos princípios”, evidenciando que não se pode mais admitir uma Administração que despreze a boa interpretação em virtude de normas que não se adequam para resolver o caso concreto.

O mesmo caminho é trilhado por Ingo Wolfgang Sarlet, que após reconhecer que em se tratando de direitos sociais prestacionais (contidos em normas de eficácia limitada) a vinculação se estende mais ao Legislador que ao Administrador, conclui que os órgãos administrativos encontram-se obrigados a considerar, no âmbito de sua discricionaridade, as diretrizes materiais contidas nas normas de direitos fundamentais a prestações, bem como que a interpretação das leis pelos órgãos administrativos deve observar os parâmetros contidos na ordem de valores da Constituição, especialmente dos direitos fundamentais, o que assume especial relevo na esfera da aplicação e interpretação de conceitos abertos e cláusulas gerais, assim como no exercício da atividade discricionária[8]”.

De qualquer modo, no caso concreto, a omissão do Legislador ensejou que o PAR fosse remetido à completa regulação pelos seus órgãos gestor e executor, fato que implica em submissão direta destes órgãos ao direito fundamental que procuram regular, bem como às demais normas constitucionais e legais.

Com efeito, em se tratando de direitos fundamentais, tanto o Legislador quanto o Administrador devem procurar a sua máxima eficácia, arredando óbices, encontrando soluções, com o escopo de ampliar seus destinatários e irradiando a concretização do direito para toda a sociedade. As exclusões, as exceções, devem ser cuidadosamente motivadas e alicerçadas em argumentos fortes e fundadas na Constituição. Em contrário proceder, ocorre o arbítrio, que fomenta o inconformismo e induz ao litígio.

À Administração não é dado agir arbitrariamente, devendo conformar seus atos aos princípios que fundam nosso sistema legal, em especial motivando e dando ampla publicidade aos seus atos. Não cabe ao Administrador fazer escolhas aleatórias, nem a se contentar com justificativas preguiçosas, restringindo direitos.

A chamada reserva do possível, aliás, antes de ser argüida, deve ser sopesada com muita cautela pelo Estado, que deve zelar pela efetivação dos direitos fundamentais, e não procurar desculpas para deixar de efetivá-los[9]. Determinados óbices operacionais ou de alocação de recursos devem ser objeto de acurado senso crítico. Por exemplo: é razoável gastar determinado montante em propaganda e deixar de subsidiar a entrada de mais beneficiários em Programas Sociais, ou de não incluir na lista do Ministério da Saúde determinado remédio mais eficaz para o tratamento do câncer?

Com efeito, e aqui se é mais explícito, para restringir direitos não basta que se tenha uma justificativa; pondera-se entre a efetivação do direito e a sua não-efetivação. Ela deve ser sustentável juridicamente e baseada em fatos aferíveis na motivação de sua ponderação[10].

Toma-se como exemplo a Lei instituidora do PAR, que restringiu o arrendamento aos indivíduos de baixa renda; é evidente que foi ponderado que a deficiência habitacional atinge mais essa classe, que os recursos são limitados, e que as classes média e alta são atendidas por outras modalidades para acessar a moradia (aluguel, Sistema Financeiro da Habitação, Sistema Financeiro Imobiliário, entre outros).

Por outro lado, a limitação administrativa para que a “baixa renda” seja entendida como a faixa das famílias que tenham renda até R$ 1.800,00 (um mil e oitocentos reais) não tem fundamentação que seja de conhecimento público[11]. Muito embora certamente haja motivos de sobra para o alcance e para a restrição da regra - e não é isso que se está abordando neste estudo – o fato ora relatado é uma amostragem do padrão da Administração Pública Brasileira, geradora de incompreensões e litígios[12].

Enfim, deve imperar o princípio de interpretação constitucional que José Joaquim Gomes Canotilho denomina princípio da máxima efectividade, implicando que no caso de dúvidas deve preferir-se a interpretação que reconheça maior eficácia aos direitos fundamentais[13].

Adstrito ao caso concreto, os beneficiários, as normas de exclusão, formas de cálculo, entre outros aspectos, devem ser objeto de atos públicos e devidamente motivados, observando ao extremo o direito fundamental que se procura regulamentar, bem como todos as demais regras e princípios constitucionais.


3 O Direito à Moradia e sua Implementação Mediante o Programa de Arrendamento Residencial

Impõe-se, à guisa de esclarecimento, estabelecer que o direito à moradia não se restringe à propriedade, uma vez que a moradia pode ser alcançada mediante locação, arrendamento, títulos de posse, bem como pelo regramento adequado dos lotes urbanos e formulação de Plano Diretor.

O Programa de Arrendamento Residencial – que é apenas uma das modalidades utilizadas para efetivar, mediante prestações, o direito fundamental em comento - veio de encontro a essa necessidade do Estado implantar ações concretas para efetivar o direito à moradia, alocando recursos e garantindo acesso aos indivíduos que, inicialmente, estariam impossibilitados de arcar com uma compra de imóvel, mediante transferência de propriedade e assunção de hipoteca, se fosse o caso. Tanto assim o é que o artigo 1º da Lei 10.188/2001 explicita que o Programa de Arrendamento Residencial é instituído “para atendimento da necessidade de moradia da população de baixa renda, sob a forma de arrendamento residencial com opção de compra”.

Restou clara a intenção do Legislador em privilegiar as famílias ou indivíduos de baixa renda, intenção que se coaduna com as regras constitucionais e com a realidade fática experimentada atualmente no Brasil, que apresenta deficiência habitacional mais elevada nas classes de baixa renda. É fato que a “baixa renda” retira desse nicho da população a possibilidade de comprar um imóvel devidamente regularizado, bem como a exclui do mercado formal da locação – repleta de exigências cadastrais e de exigências ou despesas incompatíveis com a situação financeira do indivíduo, tais como a apresentação de fiadores com dois ou mais imóveis e do pagamento de valores estratosféricos a título de seguro fiança.

No entanto, e já seguindo uma tendência de mais de meia década quanto às normas da iniciativa do Governo Federal, a Lei instituidora limitou-se a criar o PAR, a caracterizar o que se entende por arrendamento residencial, indicar suas fontes de custeio, seus órgãos gestor e executor, entre outros aspectos genéricos. Em relação aos seus beneficiários, às regras de exclusão e seleção do Programa, remeteu ao órgão gestor (Ministério das Cidades) e ao órgão executor (Caixa Econômica Federal), conforme artigos 4º e 5º da Lei 10.188/2001.

Destarte, ficou ao talante do Poder Regulamentar do Administrador, questões muito importantes do PAR, a saber: (a) o que se entende por baixa renda; (b) caracterizada a baixa renda, se existe preferência (por ex. idosos, deficientes); (c) se é admissível destinação de empreendimentos exclusivamente para determinadas classes (funcionários públicos da segurança, por exemplo); (d) caracterizada a baixa renda, se seriam admissíveis outras normas de exclusão (já possuiu outro imóvel, se sua idade não permite a contratação de seguro, etc). Note-se que tais aspectos não são exaustivos e nem a própria Lei poderia, a contento, abranger todas as hipóteses, mas são questões básicas que foram deixadas ao talante do Administrador, circunstância que, no Brasil, geralmente termina em litígio.

Anote-se que neste estudo não será abordada a conveniência, ou constitucionalidade, da adoção de tal técnica de legislar - muito embora o leitor já possa intuir a posição do autor -, mas deve ficar registrado que a Lei, pela sua omissão, inflige um espectro monumental de regulação administrativa, praticamente impondo ao Administrador o regramento completo do Programa de Arrendamento Residencial. Para constar.

3.1 O Programa de Arrendamento Residencial e a Exclusão do Idoso com mais de 64 anos de idade

O Programa de Arrendamento Residencial exige prévia inscrição do candidato a arrendatário, que deverá se submeter às exigências estabelecidas pelos órgãos administrativos, dentre eles de ter uma situação cadastral estabilizada e de não possuir imóvel próprio, sendo comum, após a inscrição, ocorrer exclusão de pretendentes, pelos mais variados motivos – alguns absolutamente legítimos -, tendo chamado a atenção o caso da exclusão do idoso com idade superior a 64 anos.

O litígio veio ao Judiciário por meio do Mandado de Segurança nº 2006.71.00.006496-3, impetrado em face da coordenadora do PAR em Porto Alegre, sendo que a síntese das informações da autoridade impetrada foi destacada no relatório da sentença:

No mérito, disse inexistir negativa de inclusão de pessoas idosas no PAR, entretanto, é obrigatória a sustentabilidade do Programa. Se a soma entre a idade do proponente e o prazo de arrendamento (15 anos) ultrapassar 80 anos, resta inviabilizada a cobertura securitária.


Esclareceu que, em caso de sinistro de imóvel não coberto, a CAIXA ou a União teriam de cobrir o prejuízo, o que seria ilegítimo, pois "a não ser na hipótese de autorização legal específica, não poderá a empresa pública suportar os ônus decorrentes de norma especial, ainda que protetiva de determinada camada ou segmento". Acrescentou que diversas medidas estão sendo tomadas no sentido de flexibilização para contratação do PAR em casos análogos.

Com efeito, pela própria justificativa apresentada pela autoridade impetrada, verifica-se que o órgão executor de Programa, até em razão da omissão legislativa, decidiu excluir os idosos acima de 64 anos, mediante tortuosa inversão de raciocínio. Ao invés de os óbices serem administrados e ultrapassados, tendo em vista se estar concretizando direito fundamental, simplesmente eles vão impedindo e restringindo a abrangência das prestações devidas pelo Estado.

Conforme referido quando do julgamento do mandado de segurança em epígrafe:

O fato é que qualquer empreendedor, seja público ou privado, antes de lançar o negócio, deve realizar levantamento acerca de eventuais prejuízos e lucros, cabendo-lhe efetuar o devido cotejo entre os possíveis benefícios e riscos.
Ou seja, não é dado à Caixa Econômica Federal, com vistas a evitar eventuais perdas econômicas, diferenciar os contratantes com fundamento em critério inconstitucional.
[...]
As razões econômicas ofertadas pela Caixa Econômica Federal, por estarem em colisão com os direitos garantidos ao impetrante, devem ceder, a fim de instaurar-se a ordem legal no relacionamento jurídico posto em exame.

Complemento o raciocínio; em se tratando de direito fundamental social, o Poder Público deve efetuar todos os estudos e avaliar todas as possibilidades, evitando a discriminação e abrangendo o maior número possível de beneficiários que se encontrem na mesma situação fática que ensejou a instituição do benefício, que no caso é a “baixa renda”. Certamente custará mais ao Estado, mas esse é o preço que nossa sociedade acordou em custear, ao propugnar obediência e dar proteção a determinados direitos, protegendo-os constitucionalmente.

Outro aspecto digno de nota flagrado na análise da justificação do ato administrativo questionado está na ausência de um regramento público e sistematizado acerca das hipóteses de exclusão de candidatos. Tudo ocorreu de acordo com atos administrativos isolados, muitas vezes expedidos por subalternos – até informalmente -, na apreciação de casos específicos, gerando insegurança jurídica e mesmo perplexidade na apreciação judicial, como restou decidido quando da decisão liminar:

Indefiro, por ora, o pedido de liminar, uma vez que inexistem nos autos elementos a apontar para a ilegalidade apontada na inicial, tampouco comprovação que existiu a alegada exclusão do impetrante da lista do PAR...


A produção administrativa, nesse caso, é ainda mais digna de reparo, porquanto além de restringir o acesso à moradia para uma camada importante da população mediante critério exclusivamente baseado em diminuição de custos, simplesmente ignorou regra de direito material que indica contrário proceder, disposta na Lei n. 10.741/2003. Confira-se:

Art. 38. Nos programas habitacionais, públicos ou subsidiados com recursos públicos, o idoso goza de prioridade na aquisição de imóvel para moradia própria, observado o seguinte:
I - reserva de 3% (três por cento) das unidades residenciais para atendimento aos idosos;
II - implantação de equipamentos urbanos comunitários voltados ao idoso;
III - eliminação de barreiras arquitetônicas e urbanísticas, para garantia de acessibilidade ao idoso;
IV - critérios de financiamento compatíveis com os rendimentos de aposentadoria e pensão.


Deveras, a situação denota a extrema atenção que deve ser atribuída ao processo decisório no âmbito da administração; na falta de previsão legal, impõe-se que seus agentes tenham uma cultura de respeito e submissão aos mandamentos constitucionais, e os advogados públicos devem esmerar-se em produzir interpretações mediante súmulas administrativas, prevenindo o desencaminhamento principiológico. Não é possível que um ato de tamanha gravidade, vulnerando direito fundamental e expressa previsão legal tenha vez na Administração Pública, mediante argumentos frágeis e escorados em impossibilidade operacional relativa.

Reitera-se, a chamada reserva do possível, antes de ser argüida e servir como tábua de salvação para as omissões do Estado, deve ser sopesada com muita cautela, pois o ente público deve zelar pela efetivação dos direitos fundamentais, e não procurar justificativas para deixar de efetivá-los.

Impõe-se, que o ato administrativo seja harmônico com o plexo de princípios constitucionais, sendo esta tarefa irrecusável do Direito Administrativo. Princípios não são estabelecidos para serem seguidos apenas quando e se forem convenientes, nem para serem arredados por juízos de conveniência administrativa; Direitos Fundamentais não foram previstos para serem sufocados e desencaminhados de seus verdadeiros objetivos.

Como sinalado por JUAREZ FREITAS, o desafio do controlador “consiste em dar efetividade a esses direitos fundamentais, sobrepassando as barreiras trazidas pelas preocupações baseadas em custos, ao menos no tocante ao núcleo essencial[14]”.

Daí se vê a imensa importância da mudança que devem sofrer os paradigmas na regulamentação e execução das Leis, de modo geral; que sejam atos dotados do maior cuidado, que seu conteúdo acarrete a maior eficácia dos direitos fundamentais, que seja incutido no agente público o respeito às escolhas feitas pelo Constituinte e, se restrição houver, que seja uma verdadeira ponderação, adequada aos objetivos alicerçados na Carta Constitucional. Ponderação que, aliás, não é tarefa incompreensível ou por demais árdua. Como restou decidido pelo Egrégio Superior Tribunal de Justiça:

“A razoabilidade encontra ressonância na ajustabilidade da providência administrativa consoante o consenso social acerca do que é usual e sensato. Razoável é o conceito que se infere a contrario sensu; vale dizer, escapa à razoabilidade ‘aquilo que não pode ser”. (RESP 200200778744, Dj de 3.11.2003, grifos meus).

Percebe-se, portanto, que a exclusão dos candidatos a arrendatários com idade superior a 64 anos não encontra sustentação na interpretação adequada dos princípios constitucionais e nem justificativa razoável para sua manutenção no âmbito do PAR, em se tratando de restrição a direito fundamental.

Convém ressaltar que o entendimento delineado na sentença foi mantido, à unanimidade, pelo TRF da 4ª Região, em julgamento realizado em 13 de junho de 2007:

MANDADO DE SEGURANÇA. PROGRAMA DE ARRENDAMENTO RESIDENCIAL. NÃO INCLUSÃO EM RAZÃO DA IDADE. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE E IGUALDADE DA CF/88. ESTATUTO DO IDOSO. ILEGALIDADE DO ATO COATOR. A negativa de inclusão em programa habitacional à pessoa idosa ofende a Constituição Federal, que tem como princípio fundamental a igualdade, constando como objetivo fundamental da nação a promoção do bem social sem preconceitos de raça, sexo, cor, idade, ou quaisquer outras formas de discriminação (4ª Turma do TRF da 4ª Região, Rel. Desembargadora Federal Marga Inge Barth Tessler).

Não se pode deixar de referir, por oportuno, que a atuação do Ministério Público e da Justiça acabou gerando um regramento que remediou a situação, e o órgão executor do PAR promoveu a reserva de 3% das vagas aos idosos, incluindo os maiores de 64 anos. No entanto, convém ressaltar que o órgão executor simplesmente não revê os seus atos, ou seja, quem foi indevidamente excluído deveria novamente postular sua vaga, entrando na fila – tão ao gosto do burocrata brasileiro – o que acabou gerando novos litígios[15].


CONCLUSÃO

A implementação do Direito à moradia por meio do Programa de Arrendamento Residencial, que veio ao seio da sociedade por meio de Lei carente de regulamentação em muitos aspectos, exigiu da Administração assumir escolhas e delimitar restrições que seriam próprias do Legislador ordinário, redundando, pela falta de cultura de obediência aos princípios, na exclusão arbitrária de pretendentes, mediante argumentos fundados em pragmatismo operacional e orçamentário, como no caso da exclusão dos pretendentes com idade superior a 64 anos de idade.

O Direito Social à moradia é Direito Fundamental e, portanto, atinge sua eficácia plena em seu duplo aspecto: direito de defesa e direito a prestações, sendo que o último enseja uma postura ativa do Estado, gerando obrigação de entregar ao seu povo prestações de natureza jurídica e material.

A gradual implementação dos direitos sociais pelo Estado, em obediência às previsões constitucionais, é uma realidade que vem encontrando óbices quando da gestão e da execução das deliberações legislativas. A preocupação e o estudo das teorias acerca da constitucionalidade das leis e da inconstitucionalidade das omissões legislativas do Estado devem dar espaço para a propagação de um Direito Administrativo Constitucional, permeado pela obediência absoluta e inteligente aos princípios e direitos fundamentais.

É absolutamente ilegítima a exclusão dos idosos maiores de 64 anos de idade do Programa de Arrendamento Residencial, porquanto o direito a prestações, aspecto essencial em se tratando de direitos fundamentais sociais, não pode ser obstado por justificativas preguiçosas e desgarradas dos princípios fundamentais da Carta Constitucional, sob pena de se transformar em discurso vazio de conteúdo; o direito fundamental social passaria não mais a ser obstado pela omissão legislativa, mas pela parcial e calculada omissão, deixando ao alvitre da Administração e das justificativas baseadas em custos a regulamentação do direito em quase todo o seu conteúdo.

Nesse passo, urge a mudança de paradigmas na Administração Pública Brasileira, sob pena da alimentação de uma cultura de desrespeito aos princípios constitucionais, devendo pautar-se pelas escolhas e concretizações de direitos fundadas na razoabilidade, com os olhos voltados aos caminhos deliberados pelo Poder Constituinte.

Em uma época de grande descrédito com a Administração Pública, atos administrativos mal fundamentados trazem desconfiança a um Programa que tem tudo para ser uma das molas propulsoras do gerenciamento adequado da deficiência habitacional no Brasil; é inadmissível a alimentação de litígios por meio de atos administrativos que tornam vazios os comandos constitucionais, e árdua luta deve ser empreendida para que se irradie a cultura da máxima efetividade dos direitos sociais fundamentais no pensamento dos agentes públicos.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALEXY, Robert. “Colisão de Direitos Fundamentais e Realização de Direitos Fundamentais no Estado de Direito Democrático”. In Revista de Direito Administrativo, n. 217, Rio de Janeiro, jul/set 1999, p. 67-79.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6 ed. rev. Coimbra: Livraria Almedina, 1993.

____. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1998.

FREITAS, Juarez. Amplitude do Controle Jurisdicional dos Atos Administrativos. Porto Alegre: TRF – 4ª Região, 2007 (Currículo Permanente. Caderno de Direito Administrativo: módulo 2)

PORTO ALEGRE (RS). Subseção Judiciária de Porto Alegre. Vara Federal do Sistema Financeiro de Habitação. Processo n. 2006.71.00.006496-3. Sentença prolatada pelo Juiz Federal Substituto Fabio Hassen Ismael em 5 de maio de 2006, publicada em 10 de maio de 2006.

PORTO ALEGRE (RS). Subseção Judiciária de Porto Alegre. Juizado Especial Adjunto à Vara Federal do Sistema Financeiro de Habitação. Processo Eletrônico n. 2006.71.50.009514-6. Sentença prolatada pelo Juiz Federal Substituto Fabio Hassen Ismael em 22 de setembro de 2007, publicada na mesma data.

SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 8 ed, rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.

______________. Os Direitos Fundamentais Sociais Na Constituição de 1988. [on line] Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ - Centro de Atualização Jurídica, v. 1, nº. 1, abril 2001. Disponível em: http://www.direitopublico.com.br/. Acesso em 10 de dezembro de 2007.

SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24 ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2005.
[1] Artigo 23, inciso IX, artigo 183 e 191, da constituição Federal.
[2] Sarlet, Ingo Wolfgang, Os Direitos Fundamentais Sociais Na Constituição de 1988. Revista Diálogo Jurídico [on line]
[3] RE 271.286/RS, Rel. Ministro Celso de Mello, DJ de 24.11.2000, p. 101.
[4] RE 407.688/SP, Rel. Ministro Cezar Peluso, j. em 08.02.2006.
[5] De acordo com J.J. Gomes Canotilho, para que um direito seja caracterizado como fundamental deve-se atentar para sua especial dignidade no ordenamento jurídico, a qual assume caráter formal e material. E, de acordo com Alexy, “direitos fundamentais são essencialmente direitos do homem transformados em direito positivo”.
[6] SARLET, Ingo Wolfgang, “Os Direitos Fundamentais Sociais na Constituição de 1988”, in Revista Diálogo Jurídico – fevereiro de 2001.
[7] FREITAS, Juarez. “O controle dos atos administrativos e os Princípios Fundamentais”,
[8] SARLET, Ingo Wolfgang. "A Eficácia dos Direitos Fundamentais".
[9]A reserva do possível é, certamente, uma restrição extrajurídica dos direitos fundamentais sociais que reduz a responsabilidade do Poder Público quanto a sua implementação. Por ser extrajurídica e, portanto, não prevista constitucionalmente, deve ser investigada ao extremo, sob pena de todos os direitos serem sepultados sob a ditadura do orçamento.
[10] Ponderação entre a insuficiência de meios materiais e o respeito ao núcleo essencial do direito e a um mínimo existencial. Tudo sob a luz da proporcionalidade.
[11] As portarias 301 e 440, de agosto de 2006, limitam-se a fixar regras.
[12] Nas invasões a alguns empreendimentos do PAR por sem-teto, alguns deles foram excluídos do programa ou ainda não tinham sido beneficiados, e estavam inconformados.
[13] Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1998, p. 1097.
[14]Freitas, Juarez. Ob. cit.
[15] Processo Eletrônico nº 2006.71.50.009514-6, cuja sentença determinou a inclusão da autora no Programa de Arrendamento Residencial “de modo que lhe seja assegurado o arrendamento de unidade habitacional em algum dos empreendimentos referidos na inicial, sem que, para isso, esteja aguardando na “fila” dos 3%. Ela deve ser reintegrada, portanto, em igualdade de condições com outros arrendatários, como se não houvesse ocorrido a exclusão.”

RUBEM LIMA DE PAULA FILHO*


EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA SENTENÇA CRIMINAL: PERSPECTIVAS ATUAIS


* Juiz Federal Substituto da 2ª Vara da Seção Judiciária do Maranhão

O presente estudo tem por escopo a análise da execução provisória no âmbito penal, após a prolação de sentença pelo juiz de primeira instância. Para tanto, será traçado um panorama a respeito das posições a respeito da questão, para, ao fim, expressarmos nossa visão quanto à problemática invocada.

Tema da maior relevância, em especial no que tange ao aspecto prático em primeira instância jurisdicional, é o referente à possibilidade de deflagrar-se a execução provisória de julgados criminais, onde observada a figura do réu preso, quando interposto recurso por parte da acusação.
Com efeito, a possibilidade de majoração da reprimenda cominada pelo juiz de base serviu, e ainda serve, para justificar a negativa de início do processo de execução penal, diga-se provisória. Contudo, posição, a nosso ver, mais consentânea com o postulado da Dignidade da Pessoa Humana vem recebendo encômios por parte dos operadores do Direito, de modo a se admitir a instauração da execução provisória do julgado, independentemente da interposição de qualquer recurso, seja da acusação ou da defesa, e sem levar em conta o(s) efeito(s) em que recebida a impugnação ao ato judicial.

A execução provisória da sentença penal é fruto da Doutrina e da Jurisprudência, fontes estas do Direito sensíveis à realidade do preso que, mesmo já sentenciado, viu diferido o trânsito em julgado de sua condenação, uma vez que interposto recurso.

Num primeiro momento, para garantir e sustentar a viabilidade da execução provisória, se estabeleceu raciocínio cuja característica é a pujante simplicidade, tendo por premissa básica a interposição de recurso unicamente por parte da defesa. O silogismo parte do pressuposto de que, se negado ao acusado o direito de recorrer em liberdade, e considerando o trânsito em julgado para a acusação e a impossibilidade da reformatio in pejus, nada impediria que o condenado fosse inserido no Sistema Penitenciário, assegurando-lhe, desde logo, a oportunidade de fruição de todos os benefícios da legislação de regência.

Um sem número de precedentes jurisprudenciais podem ser encontrados na linha de entendimento apresentada no parágrafo acima, dos quais cita-se os dois abaixo:
HABEAS CORPUS. PENAL. EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA SENTENÇA CONDENATÓRIA. REGIME SEMI-ABERTO. PENDÊNCIA DE RECURSO DA ACUSAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE.1. Inexistindo o trânsito em julgado para o órgão acusador, já que se encontra pendente recurso que objetiva o aumento da pena e, por conseguinte, o agravamento do regime prisional, inexiste constrangimento ilegal, pois cuida-se, ainda, de prisão provisória, não havendo que se falar em execução antecipada da pena;2. Ordem denegada, com recomendação.[1]

CRIMINAL. HC. ROUBO QUALIFICADO. TENTATIVA. EXECUÇÃO PROVISÓRIA. CONCESSÃO DE BENEFÍCIOS DA EXECUÇÃO. PENDÊNCIA DE APELO MINISTERIAL. IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DA SÚMULA N.º 716/STF. AUSÊNCIA DE TRÂNSITO EM JULGADO PARA A ACUSAÇÃO. RECURSO ACUSATÓRIO COM EFEITO SUSPENSIVO PENDENTE DE JULGAMENTO. PACIENTE QUE JÁ CUMPRIU QUASE A TOTALIDADE DA PENA QUE LHE FOI IMPOSTA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. LIBERDADE PROVISÓRIA DETERMINADA.ORDEM NÃO CONHECIDA. WRIT CONCEDIDO DE OFÍCIO.I. Hipótese na qual se sustenta que o paciente já teria direito à obtenção de benefícios da execução, tais como a progressão de regime prisional e o livramento condicional, em virtude do preenchimento dos requisitos legais, apesar da pendência de julgamento de recurso de apelação interposto pelo Ministério Público.II. A ausência de trânsito em julgado da decisão condenatória para a acusação, encontrando-se pendente de julgamento recurso com efeito suspensivo, impede a concessão de benefícios da execução, tendo em vista a possibilidade de modificação da quantidade da pena imposta, bem como do regime prisional fixado para o cumprimento da reprimenda, o que afasta a incidência da Súmula n.° 716/STF.III. Evidenciada a demora no exame do apelo ministerial, não se mostra correta a manutenção do acusado em cárcere, pois este já teria cumprido quase a totalidade da pena que lhe foi imposta pelo Juízo monocrático.IV. Deve ser determinada a imediata soltura do paciente, se poroutro motivo não estiver preso, a fim de que aguarde em liberdade o julgamento do recurso de apelação interposto pelo Órgão ministerial, evitando, assim, o constrangimento ilegal iminente, consistente na exacerbação do prazo estipulado na sentença condenatória para a pena imposta ao réu.V. Ordem não conhecida e writ concedido de ofício, nos termos do voto do Relator[2].
Como se observa, o raciocínio já indicado é soberano nas decisões aqui trazidas, de onde se conclui, por via de conseqüência, que inviável seria a instauração da execução provisória da pena, sob o argumento de que possível sua exasperação, caso interposto recurso pela acusação nesse sentido.

De se ressaltar que o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução nº 19, de 29 de agosto de 2006, cuja ementa adiantou dispor sobre a execução penal provisória e cujo artigo 1º, caput, possuía a seguinte redação:

A guia de recolhimento provisório será expedida quando da prolação da sentença ou acórdão, ainda sujeitos a recurso sem efeito suspensivo, devendo ser prontamente remetida ao Juízo da Execução Criminal.

Por força da Resolução nº 57, de 24 de junho de 2008, citado dispositivo passou a ser lido da forma abaixo:

A guia de recolhimento provisório será expedida quando da prolação da sentença ou acórdão condenatório, ressalvada a hipótese de possibilidade de interposição de recurso com efeito suspensivo por parte do Ministério Público, devendo ser prontamente remetida ao Juízo da Execução Criminal.

Sem considerar a duvidosa competência do CNJ para emitir a resolução em destaque, posto, a nosso ver, se tratar de matéria eminentemente jurisdicional, e a não tão perfeita técnica redacional, o intento da norma é bem claro, qual seja, admitir a execução provisória do julgado penal, salvo se interposto (e não possibilidade de interposição) recurso com efeito suspensivo pelo Ministério Público.

Analisando a gênese da Resolução nº 57/2008, encontra-se o Pedido de Providências nº 1326, instaurado a requerimento do Desembargador Federal Sérgio Feltrin Corrêa, à época Presidente da 1ª Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2ª Região.

No procedimento em foco, consta o desate de celeuma envolvendo a unidade jurisdicional citada no parágrafo acima e o Juízo da Execução Criminal do Estado do Rio de Janeiro. Na ocasião, este último, adotando orientação do Conselho da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, negou seguimento à guia de recolhimento provisório expedida por aquela, alegando que inexistente a comprovação de trânsito em julgado para a acusação. Desse modo, o juízo federal solicitou ao CNJ manifestação a respeito.

Do julgamento do procedimento administrativo, extrai-se a passagem abaixo, colhida da Declaração de Voto do Conselheiro Felipe Locke Cavalcanti, e que bem explicita o porquê da alteração do caput, do artigo 1º, da pré-falada resolução:

Com efeito, o ato normativo local será válido para as hipóteses de apelação do Ministério Público Público, em face de decisões condenatórias de primeiro grau, uma vez que tal recurso possui efeito suspensivo, hipótese na qual a guia provisória não poderá ser expedida.
Isto porque, nesta hipótese, o recurso interposto pelo Ministério Público – apelação - tem efeito suspensivo, tal qual se depreende da leitura dos artigos 593 e 597 do Código de Processo Penal.
Além disto, a Resolução nº 19 do CNJ em seu artigo primeiro textualmente afirma que “a guia de recolhimento provisória será expedida quando da prolação de sentenças ou acórdãos condenatórios, ainda sujeitos a recurso sem efeito suspensivo.
Portanto, a hipótese em exame aponta para a invalidade da resolução local unicamente quando o recurso do Ministério Público não possuir o efeito suspensivo, sendo, ao contrário, válida quando o recurso possuir tal efeito.
Deste modo, não há que se falar em incompatibilidade total da Resolução em exame, pois quando se tratar de decisão de primeiro grau, passível de apelação – recurso com efeito suspensivo – haverá necessidade da certidão do trânsito em julgado para o Ministério Público para a expedição da guia de recolhimento provisório.
Além deste argumento fundamental, que demonstra não existir o descompasso total entre a Resolução deste E. Conselho e a Resolução do Tribunal local, cumpre notar também que inexistindo trânsito em julgado para a acusação, quando a decisão for passível de recurso com efeito suspensivo, não será possível o deferimento do benefício da progressão de regime, ante a possibilidade da “reformatio in pejus”, não sendo, em conseqüência, permitida a expedição de carta de guia provisória nesta hipótese.

Pois bem, malgrado as judiciosas razões invocadas para sustentar a impossibilidade de deflagração da execução provisória quando interposto recurso da acusação com efeito suspensivo, cremos ser de maior acerto posição mais recente, em franco confronto até com a resolução do CNJ, dando por admissível tal execução. Vamos, então, a ela.

Os operadores jurídicos defensores do entendimento acima invocado partiram, inicialmente, da análise da própria situação fática daquele que, condenado em primeira instância, não viu ainda o trânsito em julgado da sentença, restando no aguardo da decisão quanto ao recurso interposto, pela acusação, defesa ou por ambos.

Ora, distantes da discussão quanto à possibilidade de majoração da censura imposta, os seguidores dessa linha de julgar, de modo simples, passaram a descrever a real situação de desvantagem que os já julgados em primeira instância e presos sofrem, unicamente porque interposto recurso da acusação, muitas vezes apenas para reconhecimento de uma mínima circunstância agravante, que em muito pouco, caso reconhecida, poderá influenciar na execução, ainda mais considerando a não tão rara demora no julgamento de processos em segunda instância.

Dentro desse contexto, entenderam não ser razoável a manutenção do acusado em regime prisional mais rigoroso que o fechado, já que em cadeia pública, em compasso de espera da conclusão final de sua demanda, da qual, inclusive, poderá muito bem vir até a ser absolvido.
Referendando o posicionamento, trago o seguinte precedente:

I. Prisão processual: direito à progressão do regime de cumprimento de pena privativa de liberdade ou a livramento condicional (LEP, art. 112, caput e § 2º). A jurisprudência do STF já não reclama o trânsito em julgado da condenação nem para a concessão do indulto, nem para a progressão de regime de execução, nem para o livramento condicional (HC 76.524, DJ 29.08.83, Pertence). No caso, o paciente - submetido à prisão processual, que perdura por mais de 2/3 da pena fixada na condenação, dada a demora do julgamento de recursos de apelação - tem direito a progressão de regime de execução ou a concessão de livramento condicional, exigindo-se, contudo, o preenchimento de requisitos subjetivos para a deferimento dos benefícios.
II. Habeas corpus: deferimento, em parte, para que o Juízo das Execuções ou o Juízo de origem analise, como entender de direito, as condições para eventual progressão de regime ou concessão de livramento condicional.[3]

Pela excelência da motivação, transcrevo excerto de voto proferido pelo Juiz Federal Saulo Casali, então convocado na 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, prolatado nos autos do HC nº 2006.01.00.046891-4/MT:

A partir da sentença condenatória existe um decreto a fixar as penas aplicadas ao acusado. Esse título condenatório é, desde então, um parâmetro a que chega o magistrado à base do livre convencimento e da motivação. A irresignação da acusação quanto à sanção penal estabelecida na sentença não significa, por si só, qualquer alteração do parâmetro até então existente. Da apelação do Ministério Público a única conclusão a que se pode chegar é a de que existe possibilidade, em tese, de majoração da reprimenda.
Pois bem. Encontramo-nos diante dessa possibilidade: a pena aplicada pelo juízo de primeira instância pode ser majorada pelo Tribunal. A partir dessa possibilidade – tecnicamente denominada questão processual, mas que, em outras palavras, pode ser traduzida em uma dúvida – estranhamente extrai-se uma conseqüência gravosa à ré, impedindo-a de gozar dos direitos atribuídos aos submetidos à execução penal. A dúvida aqui está claramente sendo interpretada em desfavor da ré, em clara ofensa à parêmia consagrada em nosso sistema jurídico: in dubio pro reo.
Se é possível que a pena seja majorada, é igualmente possível, em tese, a manutenção da reprimenda. Ocorre que se a reprimenda for mantida pelo Tribunal de segunda instância, não haverá mecanismos hábeis a recompor o cerceamento à liberdade a que fora submetido a ré, que não teve, durante todo o curso do processo, acesso aos benefícios da execução, postos no sentido de reduzir a intensidade dessa restrição de direitos. Não se pode admitir essa possibilidade de estrangulamento das mais essenciais garantias individuais em um Estado que se intitula Democrático de Direito.
A diversidade de tratamento jurídico conferido ao réu contra o qual pesa recurso de apelação da acusação e ao réu a quem é conferida a execução provisória não se justifica em face do ordenamento jurídico pátrio. O instituto da prisão, por estabelecer a mais grave sanção que se pode ser aplicada em nosso sistema penal, não pode ser objeto de interpretação desfavorável ao réu, sem que haja, nesse sentido, expressa previsão legal, sob pena de violação da base de sustentação da ordem jurídico-penal: o princípio da legalidade estrita.
Penso, alinhando-me ao recente precedente do Supremo Tribunal Federal (HC 87.801/SP), que, a partir da sentença condenatória, havendo ou não recurso da acusação, tem a ré o direito à expedição da guia de execução provisória, para que possa, desde então, exercer os direitos decorrentes da execução da reprimenda. Permanece intacta, vale destacar, a Súmula 716, do Supremo Tribunal Federal, ao consignar que “admite-se a progressão de regime de cumprimento da pena ou a aplicação imediata de regime menos severo nela determinada, antes do trânsito em julgado da sentença condenatória”. Antes do trânsito em julgado da sentença condenatória quer significar na pendência de recurso com efeito suspensivo, seja da defesa, seja da acusação.
Perguntar-se-ia, partindo desse entendimento, o que ocorreria se o recurso de apelação da acusação for provido pelo Tribunal? Majorada a pena é possível que um benefício atingido sob o manto da provisoriedade perca seus efeitos, como também é possível que a majoração não seja suficiente a infirmar o benefício auferido. Por óbvio, não se quer que a possibilidade de execução provisória da pena tenha como efeito a imutabilidade da mesma, até porque esbarraria na ausência de coisa julgada material. O que estou a sustentar é que a possibilidade de majoração da pena, e, conseqüentemente, do parâmetro utilizado para o deferimento de direitos decorrentes da execução, não pode ensejar a conclusão de que o réu deva permanecer preso como se condenado estivesse a cumprir pena em regime integralmente fechado, o que, aliás, foi declarado inconstitucional pela Suprema Corte.

Além dos argumentos expendidos em favor desta segunda posição, não se pode olvidar que o próprio Supremo Tribunal Federal editou a Súmula nº 716, que preceitua que “admite-se a progressão de regime de cumprimento da pena ou a aplicação imediata de regimento menos severo nela determinada, antes do trânsito em julgado da sentença condenatória”, a qual foi brevemente citada na transcrição acima.

Se bem lido, observa-se que o enunciado em destaque em momento algum faz referência ao efeito concedido à recepção de eventual recurso de apelação interposto à sentença condenatória. Desse modo, creio sem forte alicerce o raciocínio que emerge da primeira linha de entendimento apresentada neste estudo, ou seja, de que inviável a execução provisória, caso manejado recurso pela acusação. Interpretar-se a posição do STF dessa forma é dar-lhe um sentido não desejado, nem explícita nem implicitamente, pelos redatores da súmula, apenas sob a motivação de que em algum dia a pena aplicada poderá vir a ser majorada.

Para justificar a concordância com esta posição, pode-se invocar até mesmo cânones de natureza constitucional, como a igualdade e a dignidade da pessoa humana, bem assim dados colhidos do pragmatismo judiciário, de onde se infere que nem sempre as lides criminais envolvendo réus ergastulados possuem célere trâmite nos tribunais de apelação. Assim, a nosso ver, não se sustenta, sob qualquer fundamento, a negativa de instauração da execução provisória de julgado quando interposto recurso pela acusação, mesmo que recebido em seu efeito suspensivo.

De necessário o destaque quanto à existência de outro encaminhamento da questão, com o qual, porém, não concordamos. Explico.

Também no âmbito do Supremo Tribunal Federal, em destaque na Primeira Turma, observam-se precedentes autorizadores da execução criminal provisória, quando manejado recurso pela acusação, desta feita tomando por base, para fins de concessão de benefícios, o máximo da pena abstrata cominada ao delito. Neste aspecto, cito como precedentes os HCs nºs 93.302/SP e 90.893-4/SP, este último de seguinte redação:

HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. EXECUÇÃO PROVISÓRIA. PROGRESSÃO DE REGIME NA PENDÊNCIA DE RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO: CUMPRIMENTO DE UM SEXTO DA PENA MÁXIMA EM ABSTRATO ATRIBUÍDA AO CRIME: POSSIBILIDADE. SÚMULA 716 DESTE SUPREMO TRIBUNAL. PRECEDENTES. ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA.
1. A jurisprudência prevalecente neste Supremo Tribunal sobre a execução provisória admite a progressão de regime prisional a partir da comprovação de cumprimento de pelo menos um sexto de pena máxima atribuída em abstrato ao crime, enquanto pendente de julgamento a apelação interposta pelo Ministério Público com a finalidade de agravar a pena do Paciente. Incidência, na espécie, da Súmula 716 deste Supremo Tribunal ("Admite-se a progressão de regime de cumprimento da pena ou a aplicação imediata de regime menos severa nela determinada, antes do trânsito em julgado da sentença condenatória"). Precedentes.
2. Habeas corpus parcialmente concedido[4].

Resguardado o total respeito às decisões da Corte Suprema, ousamos desta discordar. É que somente em determinadas situações, a nova “matemática” seria realmente profícua para fins de resolução da questão. Basicamente quando a pena cominada pelo juiz de base estiver perto do máximo permitido ou quando manifesta e significativamente se apresenta o excesso de prazo do cárcere.

Somente nas situações acima indicadas, a nosso ver, seria possível imaginar que a tomada da pena máxima como parâmetro para fins de concessão de benefícios da execução seria a medida mais acertada. Contudo, imagine-se que a pena tenha sido cominada no mínimo legal ou mesmo com uma pequena exacerbação e que a apelação ministerial diga respeito unicamente à não consideração de uma única circunstância agravante. Neste caso, utilizar-se a pena máxima in abstrato, para servir de base de operações aritméticas visando alcançar o tempo exigido para a concessão de qualquer benefício, parece ser, no mínimo, um exagero, já que restaria praticamente impossível que do provimento do apelo a tanto se chegasse.

Poder-se-ia argumentar, então, que, dentro de uma realidade probabilística, a situação acima poderia vir a se configurar, sendo vedado se traçar meras perspectivas a seu respeito. Com a devida vênia, do mesmo modo que defesa seria a elaboração de uma prospecção quanto ao julgamento da corte revisora, menos autorizada é a utilização do mesmo raciocínio, considerando o máximo da pena cominada, em seu aspecto abstrato, o que, em grande parte das vezes, sequer é desejado pelo próprio recorrente. Por tais razões, não se concorda com a posição expressa no julgado acima.

Há que se indagar, neste ponto, sobre os critérios a serem utilizados para fins de deferimento da execução provisória, na situação aqui enfrentada, e as conseqüências de eventual majoração da penalidade pelo tribunal.

Dentro de uma situação de temporária condenação, já que sujeita a sentença a recurso ministerial, não se admite como obrigar o réu a se submeter a apenamento superior ao até aquele momento determinado, é dizer, torna-se seguramente desarazoado estipular prazo outro de censura corporal, para qualquer fim, no que se inclui a tomada de parâmetros objetivos para contagem de benefícios da execução criminal.

Injusto, mesmo em acepção leiga, seria determinar àquele que poderá ter a pena mantida, reduzida ou mesmo majorada que se submeta a cumprimento além do já decidido pelo Poder Judiciário. Pensar o contrário seria autorizar que o preso provisório – em “regime” muitas vezes mais severo que o fechado – ali fique indefinidamente, sem esperança nem perspectiva de iniciar regularmente a reprimenda que lhe foi cominada e, importante que se diga, sem que a tal demora tenha dado causa, já que o recurso foi interposto pelo Ministério Público. Conseqüentemente, entende-se que o tempo de pena privativa de liberdade fixado na sentença do juiz a quo deve servir para todos os efeitos.

Surge, a partir deste momento, uma nova problemática. E se a pena for majorada pelo respectivo tribunal? Ora, o instituto da Execução Provisória se caracteriza justamente pela precariedade de sua tramitação, a qual poderá ser convalidada, caso mantida in totum a sentença, ou readequada aos novos termos, em caso de modificação, mais gravosa ou não. Assim é no Processo Civil e também deve ser no Processo Penal. O acusado, ao lhe ser deferida a execução provisória da penalidade aplicada, tem ciência de que sua situação poderá muito bem ser significativamente alterada, seja, sob seu ponto de vista, para melhor ou para pior.

Atualmente, convive-se, em praticamente todo o Brasil, com varas privativas de execução criminal, com profissionais especializados, no âmbito da Justiça Estadual, conforme estipulado na Súmula nº 192, do Superior Tribunal de Justiça. Ante tal realidade, não se vê óbice algum a que se façam as devidas conformações da condenação já baixada à situação específica do condenado. Por certo que aquele que já se encontra em livramento condicional poderá muito bem ser recolocado no regime fechado e desde sempre deverá ter ciência de tal possibilidade. Trata-se, se assim pode ser considerado, do fair play da execução provisória.

No que diz respeito à ocorrência da remota hipótese de haver sido cumprido integralmente o tempo fixado na sentença sem a devida baixa dos autos da instância superior, seria vedado ao juiz extinguir a pena pelo cumprimento, já que ainda em discussão a causa, devendo fazê-lo no momento próprio ou promovendo a readequação, com a reinstauração da execução criminal, por óbvio, levando em conta todo o período já efetivamente cumprido.
Em conclusão, não se justifica a negativa de instauração de execução provisória da pena criminal, sob o único argumento de que, interposto recurso pela acusação, poderá a condenação vir a ser agravada. Ao revés, com a aquiescência do réu[5], deverá ser imediatamente iniciado o cumprimento da sentença prolatada, com a devida expedição de guia de recolhimento provisório, tendo por prazo final o até o momento estipulado. Observando-se a majoração da reprimenda, deverá o juiz readequar a execução, inclusive reinstaurando-a, no que se admite, até mesmo a recolocação do condenado em regime prisional


[1] STJ: HC 43116/MG, Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, DJU 06/02/2006, p. 353.
[2] STJ: HC46051/RJ, Rel. Min. Gilson Dipp, DJU 12/12/2005, p. 407.
[3] STF: HC 87.801/SP, Rel. Min. Sepúlveda Pertence. DJU 26/05/2006, p. 20.
[4] Rel. Min. Cármen Lúcia, DJU 17/08/2007, p. 58
[5] A manifestação do acusado, a nosso sentir, deve ser expressa, salvo quando já submetido a outra execução criminal. É que, para condenados domiciliados em locais distantes do em que situados os presídios, na maioria das vezes, torna-se mais salutar mantê-lo próximo a seus familiares e contexto geral de vivência.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

REYNALDO SOARES DA FONSECA*


A ATUAÇÃO JURISDICIONAL, DE OFÍCIO, NA FASE PRÉ-PROCESSUAL PENAL ( LEI 11.690/2008): INOVAÇÃO E INCONSTITUCIONALIDADE.

*Juiz Federal da 22ª Vara/DF, convocado para o TRF/1ª Região.


1. Sistema acusatório no processo penal brasileiro

É sabido que três são os sistemas processuais utilizados na evolução histórica do Direito Processual Penal: a) o inquisitivo, que tem suas raízes no Direito Romano, seu apogeu no Direito Canônico, a partir do século XV, e seu declínio com a Revolução Francesa. Inexistem, nele, regras de igualdade e liberdade processuais e as fases do processo são desenvolvidas por impulso oficial; b) o acusatório, que tem suas raízes na Grécia e em Roma, florecendo, após a Revolução Francesa, na Inglaterra e na França. Nos dias atuais, tal sistema, adotado na maioria dos países americanos e em diversos países da Europa, pressupõe uma relação processual, com a participação, em pé de igualdade, do autor e do réu, sobrepondo-se a eles a atuação do Juiz, como órgão imparcial de aplicação da norma. Além da efetivação do princípio do contraditório, como garantia do cidadão, a iniciativa do processo cabe à parte acusadora, que poderá ser o ofendido ou o próprio Estado. Logo, as funções de acusar, defender e julgar são conferidas a pessoas diversas, sendo incabível ao juiz iniciar o processo ( ne procedat judex ex officio); c) o misto, que tem seu desenvolvimento na Europa Continental do Século XIX, é adotado, hoje, em alguns países europeus e até na América Latina (Venezuela). Tal sistema combina elementos dos sistemas anteriores e é constituído de duas etapas: a antecedente (instrução inquisitiva: investigação preliminar e instrução preparatória, esta a cargo de um Juiz Instrutor ), sem participação da defesa, e a posterior (juízo contraditório – julgamento).

No Direito pátrio, prevalece o sistema acusatório, considerando o regramento consagrado nos arts. 5º, incisos LIII, LV e LIX; 92 a 126 e 129, inciso I, da Constituição da República de 1988. Tal sistema, todavia, não é puro, tanto que o Magistrado tem, obrigatoriamente, o controle das garantias constitucionais dos cidadãos, mesmo na fase pré-processual (exemplos: exame de pedidos de liberdade provisória; deferimento de provas cautelares; decretação de prisões preventiva ou temporária; de busca e apreensão, de interceptação telefônica, etc.) e, após iniciado o processo, pode agir até mesmo de ofício, em busca da verdade material, uma vez que a relação processual já restou estabelecida (vide a redação anterior do art. 156 da Lei Adjetiva Penal).

Com efeito, na fase preparatória facultativa, em que a Autoridade Policial realiza uma investigação inquisitorial, com o objetivo de formar a opinião da acusação, a participação do Estado-Juiz é de controle das garantias supramencionadas. Não há a figura do Juiz instrutor.

Contudo, conforme já dito, nascida a relação processual, após a iniciativa indispensável da parte acusadora (MPF ou o ofendido, conforme o caso), o processo penal passa a ser, no Brasil, eminentemente contraditório, público e escrito. Embora o ônus da prova incumba às partes, o Juiz pode determinar, de ofício, quaisquer diligências para dirimir controvérsia sobre ponto relevante, pois o magistrado não é, na fase processual propriamente dita, um mero espectador inerte na produção de provas. Na realidade, vale a pena recordar, no tópico, que o conjunto probatório produzido na instrução processual penal objetiva formar o livre convencimento do julgador na busca da verdade real.

2. Reformas Setoriais do processo penal brasileiro. Inovação da Lei 11.690/2008 – Nova redação do art. 156, I, do C.P.P.


É indiscutível que o Código de Processo Penal Brasileiro de 1941 envelheceu e deve adaptar-se aos novos tempos, especialmente ao mundo da cibernética, à complexidade das relações sociais e humanas daí decorrentes e aos princípios e garantias processuais consagrados na Constituição Cidadã.

A sociedade exige, mais do que nunca, a efetividade das normas jurídicas vigentes, seja no âmbito cível, seja na seara penal, não admitindo mais uma estrutura processual arcaica e ultrapassada, sem qualquer conexão com a realidade contemporânea.

De outra parte, a reforma legislativa não pode ser conduzida pela pauta da mídia, para dar respostas imediatas e desconexas ao tecido social. Não se deve perder de vista o sistema processual penal como um todo, preservando-se, sempre, os direitos e as garantias constitucionais, especialmente quanto ao binômio indivíduo x coletividade. Nessa perspectiva, os princípios da celeridade processual, da efetividade e do integral respeito aos direitos fundamentais e ao Estado Democrático de Direito devem ser a tônica de qualquer interpretação processual reformista.

Nessa linha de raciocínio, pelas mesmas dificuldades conhecidas na reforma do processo civil, os Poderes do Estado Brasileiro optaram por um reforma pontual do Código de Processo Penal. No ano próximo findo (2008), dando continuidade à reforma pontual do referido Estatuto Processual, restaram editadas três novas leis. A Lei 11.689, de 09 de junho de 2008, que alterou sensivelmente o procedimento dos crimes dolosos contra a vida. A Lei 11. 690, da mesma data, que modificou a disciplina de prova. A Lei 11.719, de 20 de junho de 2008, que alterou os procedimentos comum, ordinário e sumário. Mais recentemente, editou-se a Lei 11.900, de 08 de janeiro de 2009, que legitima, excepcionalmente, a prática de ato processual, pelo sistema de videoconferência. Aguarda-se, ainda, para este ano, a aprovação de leis que modificam a sistemática das medidas cautelares penais ( Projeto de Lei 4.208/2001) e dos recursos e ações autônomas de impugnação ( Projeto de Lei 4.206/2001).

É evidente que as referidas mudanças processuais ocorridas ensejarão amplos e acirrados debates de natureza constitucional e de interpretação infraconstitucional. Neste breve artigo, porém, pretende-se tratar somente de um aspecto específico do referido conjunto de reformas setoriais do processo penal pátrio: a questão da constitucionalidade da atuação jurisdicional, de ofício, na fase pré-processual, assegurada pela nova redação do art. 156, inciso I, da Lei Adjetiva Civil, dada pela Lei 11.690/2008.

No ponto, o legislador brasileiro não apenas consolidou a diretriz pretoriana já consagrada no sentido de que o magistrado, na instrução processual, não é um mero espectador, mas pode e deve interferir na sua produção, ordenando, inclusive, de ofício, a realização de diligências e provas, na busca da verdade real. O Parlamento, de forma inteiramente inovadora, foi mais além: flexibilizou nosso sistema acusatório e o próprio princípio da iniciativa das partes, autorizando o Estado-Juiz a produzir provas, de ofício, na fase pré-processual. Alterou, portanto, a premissa de que o princípio do impulso oficial pressupõe, necessariamente, a efetivação do princípio da iniciativa das partes. Veja-se, pois, a alteração noticiada:

A antiga redação do art. 156 do CPP tinha o seguinte teor:

“A prova da alegação incumbirá a quem o fizer; mas o juiz poderá, no curso da instrução ou antes de proferir sentença, determinar, de ofício, diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante.”

Já a redação atual é a seguinte:

“A prova da alegação incumbirá a quem o fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício:
I. ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, a adequação e proporcionalidade da medida;
II. determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante.”

Com efeito, embora a Lei 11.690/2008 tenha mantido o mesmo objeto no referido art. 156 (ônus da prova e os poderes instrutórios do juiz), introduziu alteração significativa dos poderes do magistrado, ampliando-os para dizer que podem ser utilizados antes mesmo de iniciada a ação penal.

Tal regramento é, realmente, inovador e polêmico, sendo necessário seu exame à luz da Constituição e do modelo acusatório do processo penal que a Lei maior consagra.

3. A interpretação do art. 156, I, do Código de Processo Penal, conforme a Carta Magna de 1988: controvérsias.

Como já dito, em matéria probatória, a atribuição de poderes ao juiz, sem a iniciativa das partes, é tema extremamente polêmico, tanto na esfera do processo civil quanto no âmbito do processo penal, uma vez que coloca em confronto os valores fundamentais da imparcialidade dos julgamentos e da busca da verdade completa dos fatos.

Felizmente, o sistema acusatório brasileiro foi mitigado tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência, que passaram a rejeitar a idéia do magistrado como mero espectador, totalmente passivo diante das atividades das partes, principalmente na justiça criminal. Consagrou-se, portanto, em relação às provas e diligências, colhidas na instrução processual, a possibilidade da atividade jurisdicional de ofício, mesmo porque todo o conjunto probatório colhido é destinado ao livre convencimento do julgador, que, nos termos do art. 93, IX, da CF/88 e do art. 155 do CPP, deve fundamentar sua decisão, em regra, apenas nos elementos probatórios que passaram pelo crivo do contraditório, a fim de possibilitar, inclusive, a impugnação recursal pertinente.

Nesse sentido, pondera a festejada Professora Ada Pellegrini Grinover que o magistrado moderno deve viabilizar o efetivo contraditório, assumindo uma posição ativa na fase instrutória, determinando, inclusive e se necessária, a realização de provas. Não pode, pois, ficar satisfeito com a plena disponibilidade das partes em matéria de prova. [1]

Acontece que tal postura pressupõe a lide instaurada ( iniciativa das partes) e os consagrados princípios do impulso oficial e da busca da verdade real. Na fase pré-processual, todavia, a relação processual ainda não foi estabelecida. A acusação procura elementos de convicção e a defesa pode, sim, pretender medidas que acautelem seus direitos. A participação do magistrado, nesse momento, então, é apenas de controle das garantias constitucionais, a fim de não permitir excessos e de garantir o monopólio da atividade jurisdicional do Estado.

Não me parece, portanto, possível a intervenção direta e de ofício do Estado-Juiz, na fase anterior ao início da ação penal ( investigativa), sem que as partes demonstrem concretamente interesse para litigar ou para prevenir direitos. Pensar diferente, data venia, significaria, subverter o sistema acusatório, com manifesta ofensa aos princípios do devido processo legal e do próprio Estado Democrático de Direito.

Se a prova a ser produzida, na fase pré-processual, é urgente e relevante, cabe à parte que tem interesse direto na sua realização, efetivar sua postulação ao Estado-Juiz, ainda que durante o plantão forense, para que permaneçam compatibilizados os princípios norteadores do sistema acusatório pátrio.

Além do mais, não se pode esquecer que a imparcialidade, que não se confunde com a chamada neutralidade científica, é a pedra de toque da atuação judicial e garantia maior de objetividade de qualquer julgamento. [2] Daí, a intervenção do juiz , de ofício, no que tange à produção de provas, não pode ser orientada por uma predisposição intelectual do magistrado sobre as possibilidades futuras de uma incerta relação processual ou por seu sentimento pessoal de justiça. Cabe ao Parquet, ao ofendido, ou ainda, ao réu o exame da necessidade, urgência e relevância da colheita de provas, na fase pré-processual. A intervenção direta do magistrado, em tal momento, compromete, sem sombra de dúvida, o pleno exercício do contraditório e a desejada imparcialidade do julgador.

De fato, “é difícil imaginar que um juiz ativo na fase de investigação possa ser, ao mesmo tempo, um magistrado imparcial no momento da decisão, porque a tarefa de recolher elementos para a propositura da ação penal é, por natureza, parcial e, no nosso sistema, realizada unilateralmente pelos órgãos oficiais incumbidos da persecução”.[3]

Recorde-se, todavia, que a compreensão do novo art. 156, I, do CPP é extremamente controvertida. Parte da doutrina vem proclamando tal dispositivo inteiramente compatível com a ordem constitucional vigente. Para tais doutrinadores, o ativismo judicial deve alcançar até mesmo a fase de investigação criminal. O juiz deve sair de sua sala e buscar a produção de provas de ofício. A ação penal é um múnus público. O magistrado criminal é pago pelo Estado para fazer justiça nos casos concretos aplicando a lei e a Constituição. Sua missão de fazer justiça não pode ser limitada pela suposição de quebra de imparcialidade e vício no julgamento a ser futuramente prolatado. [4]

Peço licença para deles discordar. O pacto republicano brasileiro não acolheu a figura do juiz inquisidor e a disposição do aludido art. 156, I, do CPP leva ao perigoso terreno da atuação judicial investigatória, subvertendo-se, assim, o sentido de um processo penal de matriz acusatória.

Além do mais, torna-se inaceitável, data venia, a idéia de que a atuação do Ministério Público, da Polícia e/ou do ofendido, na fase investigativa, é insuficiente, para o combate à criminalidade, legitimando, a partir daí, a visão do Juiz inquisidor. No Estado Democrático de Direito, cada órgão tem sua função, segundo o ordenamento jurídico em vigor, não se justificando, pois, a invasão “justiceira” de outra instituição.

A propósito, em situação análoga, referente à previsão da Lei 9.034/1995, que permitia ao juiz penal realizar pessoalmente diligências de colheita de dados sigilosos, em qualquer fase da persecução, o colendo Supremo Tribunal Federal proclamou a inconstitucionalidade de tal disposição, por ofensa aos princípios da imparcialidade judicial e do devido processo legal. Em suma, disse a Suprema Corte que os juízes têm competência para processar e julgar, mas não para investigar na esfera extraprocessual. [5]

Com efeito, filio-me à corrente doutrinária que proclama a inconstitucionalidade da expressão “ mesmo antes de iniciada a ação penal”, contida no inciso I, do art. 156, do CPP ( redação dada pela Lei 11.690/08). O ordenamento constitucional pátrio é claro. Nosso sistema processual é acusatório e exige a iniciativa das partes, para a instauração da relação processual. O impulso oficial é conseqüente. O princípio da verdade material não transforma o magistrado em um justiceiro nem em um agente arrecadador de elementos de investigação.

4. Fontes de Pesquisa Bibliográfica

BADARÓ, Gustavo Henrique. Direito Processual Penal, tomo I, São Paulo, Elsevier Editora Ltda, 2008.
BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direito fundamentais, .Brasília Jurídica, 2ed, 2000.
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. São Paulo: Saraiva, 1996.
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Trad. De Carlos Nelson Coutinho, Rio de janeiro, Campus, 1992.
BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de Processo Penal. São Paulo, Editora Saraiva, 3ª. Ed. Revista, atualizada e ampliada, 2008.
BRANCO, Paulo Gustavo; COELHO, Inocêncio Mártires; MENDES, Gilmar Ferreira. Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais. Brasília Jurídica, 2000..
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Processo Penal. São Paulo, Editora Atlas, 18ª. Ed. Revista e atualizada por Renato N. Fabbrini, 2006.
MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis Moura (coordenação). GOMES FILHO, Antônio Magalhães, PRADO, Geraldo, BADARÓ, Gustavo Henrique R. Ivahy, SANTOS, Leandro Galluzzi, BOTTINI, Pierpaolo Cruz. As Reformas no Processo Penal: as novas leis de 2008 e os projetos de reforma. São Paulo. Revista dos Tribunais, 2008.
SILVA, Ivan Luís Marques. Reforma Processual Penal de 2008. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2008.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. São Paulo, Editora Saraiva, 10ª. edição, revista e atualizada, 2008.

[1] ADA PELLEGRINI GRINOVER, A iniciativa instrutória do juiz no processo penal acusatório, A marcha do processo, p. 80.
[2] ANTONIO MAGALHÃES GOMES FILHO, Provas - Lei 11.690, de 09.06.2008, As Reformas no Processo Penal, p. 259.
[3] ANTONIO MAGALHÃES GOMES FILHO, ob.cit., p. 260.
[4] IVAN LUÍS MARQUES DA SILVA, Reforma Processual Penal de 2008, p. 65
[5] STF, Pleno, ADIn 1.570/DF, rel. Min. Maurício Correa, j. 12.02.2004, RTJ 192/838.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

ARTHUR PINHEIRO CHAVES


A IMPORTÂNCIA DA INDEPENDÊNCIA DO JUDICIÁRIO


* Juiz Federal Substituto da 1ª Vara da Seção Judiciária do Pará


Em janeiro de 2009 ocorrerá, em Belém, o V Fórum Mundial de Juízes, com apoio da Associação dos Juízes Federais do Brasil – AJUFE, da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da Oitava Região (Amatra 8) e da Associação dos Magistrados do Estado do Pará (Amepa). Um dos temas centrais do encontro é a Independência do Poder Judiciário.


A esse respeito Alexander Hamilton, um dos pais da Constituição Norte- Americana, defendeu no The Federalist, no 78, o papel do Judiciário na estrutura constitucional, enfatizando que "'não há liberdade se o Judiciário não estiver separado dos poderes Legislativo e Executivo. (...) A liberdade nada tem a temer de um Judiciário independente ".

O excerto transcrito denota a necessidade de reflexão acerca da garantia de manutenção de um Judiciário efetivamente independente, situação para cuja existência se requer que os juízes sejam protegidos contra a ameaça de retaliações por suas decisões e que sua esfera de autoridade esteja protegida contra qualquer sorte de influência externa descabida, seja aberta ou insidiosa.

Requer que os juízes tenham liberdade para decidir de acordo com o melhor de sua capacidade jurídica, aplicando a lei de forma justa e imparcial frente às partes em oposição. Requer, em suma, que os juízes possam decidir com independência, imparcialidade, integridade, propriedade, igualdade e competência.

Para tanto é necessária a adoção, entre outros aspectos, de mecanismos que assegurarem que os juízes exerçam seus poderes de forma imparcial e que se mantenham acima de interesses pessoais ou de influências externas, mesmo de outros poderes do Estado ou de outros órgãos do próprio Judiciário.

Mecanismos como o de vitaliciedade do cargo, a não ser em casos graves de conduta imprópria; de inamovibilidade; de garantia da irredutibilidade salarial, aí incluída, como um de seus aspectos, a preservação do valor de contraprestação remuneratória condigna com as responsabilidades do cargo, não representam privilégios, mas a exemplificação de instrumentos necessários à garantia de que os juízes não hesitarão em aplicar a lei de acordo com a sua consciência, servindo de elementos-chave para a imparcialidade de suas ações.

Vale ressaltar que a independência do Judiciário não é um fim em si mesmo, mas um meio para se atingir um fim. Ela é a essência do Estado de Direito, dando ao conjunto dos cidadãos a convicção de que as leis serão aplicadas com justiça e igualdade.

A independência do Judiciário permite que os juízes tomem decisões que, não obstante possam contrariar interesses particulares, sejam consentâneas com a preservação dos direitos e liberdades. Um Judiciário independente tem posição privilegiada para refletir sobre o impacto de suas decisões sobre os direitos e as liberdades, podendo garantir que esses valores não sejam subvertidos. A independência é, portanto, o manancial de coragem necessária para atender a essa indispensável função do Estado de Direito.

A percepção de Hamilton, de início mencionada, transcende, portanto, toda e qualquer diferença entre os sistemas jurídicos das nações. Cada país estampa seu selo característico ao sistema jurídico que adota, mas alguns princípios, em face de sua relevância, transcendem as diferenças nacionais, possuindo cunho universal. A importância de um Judiciário forte e independente é um desses princípios, considerada sua relevância para o funcionamento eficiente da democracia.

Só com independência é possível ao Poder Judiciário garantir ao povo a realidade de cumprimento zeloso do Estado de Direito. Mas, ao passo que é bastante fácil concordar que a independência do Judiciário é essencial para sustentar o Estado de Direito, desafiadora é a tarefa de pôr em prática e conservar esse preceito tantas vezes posto á prova, cabendo aos que crêem no valor da preservação dos postulados democráticos a sua ferrenha e irrestrita defesa.

sábado, 17 de maio de 2008

FLÁVIO DA SILVA ANDRADE*


COSIP - UM IMPOSTO TRAVESTIDO DE CONTRIBUIÇÃO
* Juiz Federal Substituto em Rondônia

A Contribuição para Custeio do Serviço de Iluminação Pública (COSIP), trazida pela EC nº 39/2002, que acrescentou o artigo 149-A à Constituição Federal, é um verdadeiro imposto disfarçado, travestido de contribuição. É imposto porque o fato gerador, essencial para a definição da natureza jurídica do tributo (art. 4º do CTN), é um serviço inespecífico, não mensurável, indivisível e insusceptível de ser referido a determinado contribuinte.

A COSIP é um tributo inconstitucional. O fato de o Poder Constituinte Derivado ter incluído tal exação no elástico rol dos tributos que atendem pelo apelido de “contribuição” não é bastante para se superar sua inconstitucionalidade, apontada e reconhecida ainda quando instituído sob a denominação de “taxa de iluminação pública” (TIP).

Mesmo que se tenha mudado o nome da exação, ela continua incompatível com o Texto Constitucional. A COSIP padece de inconstitucionalidade porque é cobrada de apenas uma parcela dos usuários de um serviço público genérico (ut universi), que beneficia a sociedade como um todo. Por isso, ofende o princípio da isonomia ou igualdade tributária (artigo 5º, II, CF/88), já que enseja a exigência do tributo de apenas uma parte dos beneficiários da iluminação pública.

Os doutrinadores pátrios e o Pretório Excelso sempre afirmaram que serviços gerais, dentre eles o de iluminação pública, por não serem referíveis a contribuintes determinados, devem, obrigatoriamente, ser custeados por meio das receitas gerais provenientes de impostos.

Cuidando do tema, MARCELO ALEXANDRINO e VICENTE PAULO esclarecem que “qualquer tentativa de cobrar tributo específico para custeio de um serviço geral acarretará situações absurdas, verdadeiros atentados aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade e ao princípio da isonomia (quando não ao mais elementar senso de justiça), uma vez que nunca será possível determinar se se estará cobrando de quem efetivamente (ou mesmo potencialmente) utiliza o serviço, muito menos se a cobrança guardará um mínimo de proporção com o grau de utilização do serviço pela pessoa eleita como contribuinte; ademais, é óbvio que uma enorme parcela dos usuários do serviço não sofrerão qualquer cobrança, pelo simples fato de que a lei instituidora, em seu critério obrigatoriamente arbitrário de escolha dos contribuintes, não os terá enquadrado como tal”. (in Direito Tributário na Constituição e no STF, Editora Impetus, Rio de Janeiro, 6ª ed., 2003, p. 59)

Por outro lado, assinale-se que, sendo a COSIP um verdadeiro imposto, sua inconstitucionalidade fica mais acentuada se se considerar que os Municípios não dispõem de competência residual em matéria tributária, outorgada exclusivamente à União, com as limitações do art. 154, I , da Constituição Federal.

Anote-se ainda, por relevante, que a instituição desse novo tributo afronta o princípio federativo da discriminação de rendas tributárias, na medida em que tenta garantir, a toda custa, mais recursos aos Municípios, contrariando a matriz constitucional das contribuições e distorcendo o Sistema Tributário Nacional.

Assim, ante as considerações supra, conclui-se que a contribuição para o custeio do serviço de iluminação pública, criada pela Emenda Constitucional nº 39/02, não tem respaldo no modelo constitucional tributário do país, pelo que se espera que o STF venha a reconhecer sua inconstitucionalidade.

sábado, 10 de maio de 2008

AGAPITO MACHADO*


CRIME ORGANIZADO NO BRASIL

Juiz Federal e Prof. Universitário em Fortaleza*

Trata-se de crime gravíssimo, de grande potencial ofensivo, e que por isso necessita de rigor na interpretação/aplicação da lei e da Constituição, sendo mesmo indispensável cooperação internacional, como atualmente prevista no art. 65 da nova lei antidroga nº 11.343/06.

O crime organizado, mais do que nunca, está invadindo o Brasil e aqui investindo no setor imobiliário e hoteleiro, notadamente no Nordeste (Natal e Fortaleza), realizando os delinquentes, destarte, a famosa lavagem dinheiro, conforme dados da Policia Federal e outros setores de inteligência,como menciona o jornalista Ricardo Galhardo, in “máfias investem no Brasil”, Jornal O GLOBO (RJ), de 13 de abril de 2008.

Para melhor compreensão do tema, é importante elencarmos os pontos positivos e negativos, quanto ao seu combate, pelo Estado brasileiro.

Como pontos positivos, podemos mencionar a legislação existente, bem como, projetos quanto à Segurança Pública que tramitam no Congresso Nacional.

1. Legislação em vigor:
a) Lei nº 8072/90(crimes hediondos);
b) Lei nº 9034/95 sobre crime organizado,recentemente alterada pela Lei nº10.217,de 11.04.01, e que já sofre críticas da doutrina, segundo a qual, a despeito de contemplar dois novos institutos, interceptação ambiental, infiltração policial, além da ação controlada (entrega vigiada e flagrante diferido), teria eliminado a eficácia de inúmeros dispositivos legais contidos na Lei nº9.034/95);
c) Lei nº 11.466/07 (proíbe uso de celular nos presídios e criminaliza a conduta de Diretor e funcionários que facilitem a sua entrada);
d) Lei nº 11.473/07, sobre a Segurança Pública, permitindo a cooperação federativa,e, portanto, realização de convênios com Estados e DF, etc;
e) Lei nº 9.296/96, sobre a escuta telefônica, prova essa que os Deputados e Senadores, sem maiores explicações à Sociedade, deixarem permanecer ilícita durante 8 (oito) anos,porque somente no ano de 1996 é que regulamentaram o inciso XII do art.5ºda CF/88;
f) Lei nº 11.343/06 (lei antidroga) que endureceu com os traficantes e melhorou a situação dos viciados. A pena passou para 5 a 15 anos; permitiu a destinação dos bens para serem logo usados pela policia; permite a venda rápida dos bens dos bandidos, em leilão, com o dinheiro indo para o FUNAD ;

2. Legislação que está por vir, relativa a PROJETOS (PACOTE) NO CONGRESSO NACIONAL QUANTO À SEGURANÇA PÚBLICA: Tramitam 40 projetos a saber:

a) a maioridade penal, em crimes graves, é reduzida para a partir de 16 anos, já aprovada na CCJ do Senado;
b) O Senado aprovou o controle/monitoramento eletrônico de presos (coleira ou tornozeleira eletrônica), a separação de presos perigosos e o afastamento sem remuneração de servidores sujeitos a processo criminal/administrativo);
c) acaba-se com a prescrição retroativa entre a data do fato e recebimento da denúncia (fase do Inquérito Policial),onde repousa a maior causa de impunidade;
d) Está previsto o interrogatório por vídeo conferência;
e) A CCJ da Câmara aprovou Emenda que obriga as escolas públicas a oferecerem ensino fundamental integral até 2023, para evitar menores na rua e contato com os traficantes e também define melhor o crime de seqüestro relâmpago, que hoje é considerado roubo;
f) A CCJ da Câmara aprovou também projeto que cria um critério de separação de presos condenados e provisórios e divide os presos de acordo com os crimes que praticaram e não como é hoje.

Como pontos negativos, podemos mencionar, entre outros, os seguintes:

a) ineficiência do Estado Brasileiro na fiscalização de armas e drogas, principalmente nas fronteiras. É indispensável maior eficácia e para isso precisaria pagar melhor o policial, em vida, e não só quando morrer, como é o caso da Lei 11.343/06 que indeniza a família do agente morto em serviço, com cem mil reais;
b) há um completo desencontro de informações entre os órgãos de inteligência (ABIN, Policia Federal e outros). Deveria existir um banco de dados nacional para a completa interação entre os diverso órgãos de inteligência;
c) Conforme críticas da Doutrina, falta a definição na Lei, do que seja organização criminosa, mormente após a Lei nº 10.217/01;.

Mas o maior problema mesmo no Brasil, vem sendo a interpretação que o STF vem dando ao princípio constitucional da presunção de inocência(culpabilidade), mesmo em crimes gravíssimos.

Mesmo após a condenação em primeiro grau ser confirmada em grau de recurso pelos Tribunais de Justiça ou Regionais Federais,ou seja, na fase dos recursos Especial e Extraordinário que, por força da Lei nº8.038/90,não têm efeito suspensivo, a prisão processual dificilmente é decretada conforme entendimento do STF.

O STF, portanto, só admite a prisão processual/cautelar em casos que, na prática, o grande deliquente não é ingênuo de fazer, ou seja, quando há provas inequívocas de que o réu irá fugir ou se encontrar ameaçando testemunhas. O STF desconsidera por completo a gravidade do crime e nem dá bolas para o clamor da sociedade.

Destarte, é mais fácil se eliminar o mosquito da dengue no Brasil, do que se manter preso cautelarmente um bandido que comete um crime gravíssimo, na visão do atual STF.

Na verdade, a CF/88 faz enorme distinção entre crime de mínima e média potencialidade ofensiva para os de máxima potencialidade ofensiva, não lhes permitindo v.g, fiança, liberdade provisória, graça, e anistia, como a prática de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins,o terrorismo e os definidos como crimes hediondos (art.5º, XLIII), havendo até mesmo crimes considerados imprescritíveis, como o racismo (art. 5º,XLII), a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (art. 5ºXLIV).

Não é razoável/proporcional que a presunção de inocência/culpabilidade nos crimes gravíssimos tenha a mesma mensuração de benevolência dos sem gravidade (mínima e média potencialidade ofensiva).

A Constituição de 1988, a bem da verdade, não ensejou a interpretação que o STF deu ao tema, embora saibamos que a Constituição é aquilo que o STF diz ser, e que o resto é conversa para boi dormir.

A final, foi o STF, inclusive o da era Lula, quem sempre afirmou não existirem direitos absolutos, mas é ele, atualmente, que está elevando à categoria de quase absolutos, os direitos e garantias individuais.

A grande verdade é que o atual STF NÃO PONDERANDO O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE, FRAGILIZOU A SOCIEDADE, DANDO INTERPRETAÇÃO FAVORAVEL À PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA, MESMO EM CRIMES GRAVÍSSIMOS. E O MAIS GRAVE: como regra quase que absoluta, NÃO ADMITE A PRISÃO PROCESSUAL NEM MESMO NA FASE DOS RECURSO ESPECIAL(STJ) e RECURSO EXTRAORDINÁRIO (STF), recursos esses que não têm efeito suspensivo, como consta da Lei nº8.038/90.

Vejamos a falta de ponderação do STF no trato dessa matéria.

O STF de 8 anos atrás, disse que era constitucional e Lei nº8.072/90 (crimes hediondos) quando proibia a mudança de regime prisional. E o atual STF, SEM QUALQUER ALTERAÇÃO LEGISLATIVA (mutação constitucional), em novo julgamento, afirmou que a referida Lei é inconstitucional, forçando o Congresso Nacional a editar nova Lei, que passou a permitir a mudança de regime, se cumpridos 2/5 da pena ou 3/5, se reincidente. Nos demais casos, basta cumprir 1/6 da pena (Lei nº 7.210/84).

E não ficou só aí.

O STF entendeu ser também ilegal o interrogatório mediante vídeo conferência (on line ou virtual).

Ora, onde existir violação da ampla defesa, se os advogados podem estar presentes no presídio, onde está o preso, e ao mesmo tempo, no Fórum, onde o juiz está realizando o seu interrogatório eletronicamente?. E o perigo que a Sociedade corre com o transporte de presos perigosos para atos simples como o interrogatório?

E o mais inusitado: alguns Ministros advertiram, nesse mesmo julgamento, que nem mesmo uma futura lei poderá autorizar tal ato, pois CPP dispõe literalmente que o interrogatório tem de ser na “presença” do Juiz.

QUAIS ENTÃO AS SOLUÇÕES PARA SE DAR VERDADEIRA EFICÁCIA AO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE NESSES CASOS E ASSIM PROTEGER A SOCIEDADE DOS BANDIDOS PERIGOSOS, mantendo-os presos antes, durante e depois do processo?

Como conseguir uma nova interpretação da chamada presunção de inocência ou de culpabilidade, para os crimes gravíssimos, vista sob a ótica do princípio da proporcionalidade? O que fazer?

a) Tentar com o STF para que mude de opinião? Impossível com a atual composição;
b) Referendo, Plebiscito? Não seria o caso;
c) EMENDA INTERPRETATIVA do inciso LVII, do art.5ºda CF/88, para deixar claro que, nos crimes gravíssimos em que ela mesma já proíbe a fiança, a anistia e a graça, além dos crimes imprescritíveis, a presunção de inocência não deve ser ponderada na mesma proporção como ocorre nos crimes de menor gravidade e deixando que o STF a aprecie caso se argua a sua inconstitucionalidade. Isso é a eterna luta pelo direito, como nos ensinou Rudolfo von Ihering.
Embora não tendo pretensão de ser um constitucionalista, penso que a hipótese de Emenda Interpretativa poderia ser o caminho, tendo em vista que o texto magno ao prescrever que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, não está afirmando,categórica e absolutamente, que ninguém será preso antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória, notadamente em crimes gravíssimos.

Do contrário, o STF de ontem ou mesmo o de hoje, já teria decretado a inconstitucionalidade da Lei nº 8.038/90, que afirma que o RESP e o RE não têm efeito suspensivo; também teria alterado o seu Regimento Interno e também afastado a incidência da Súmula 09 STJ (“a exigência de prisão provisória, para apelar, não ofende a garantia constitucional da presunção de inocência).

NÃO É POSSÍVEL QUE A CLÁUSULA PÉTREA DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA, NÃO POSSA SER MELHOR PONDERADA (PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE), EM PROL DA SOCIEDADE, QUE ESTÁ E NÃO PODE CONTINUAR REFÉM DA CRIMINALIDADE ORGANIZADA. O DIREITO INDIVIDUAL NÃO DEVE SE SOBREPOR À TUTELA COLETIVA.

NÃO É POSSIVEL QUE A SOCIEDADE COMPOSTA POR HOMENS DE BEM, PERMANEÇA REFÉM DA GRANDE CRIMINALIDADE, SILENCIANDO A TUDO ISSO SEM NADA FAZER.

Façamos alguma coisa, enquanto é tempo.

Termino esse pequeno trabalho com a seguinte frase de Martin Luther 'King: “ o que mais preocupa não é nem o grito dos violentos, dos corruptos, dos desonestos,dos sem caráter, dos sem ética.O que mais preocupa é o silêncio dos bons”.